Friday, October 2, 2009

MORREU E DEIXOU MUITA SAUDADE

E sabado. Meu corpo desperta sozinho por volta das nove da manha. Estico meus bracos e pernas e rolo para o outro lado da cama. Tom (meu namorado, futuro marido) havia saido bem cedo. Ele e construtor e estava trabalhando em um projeto do outro lado da cidade.
Quarto escuro, somente uma faixa estreita da luz do sol atravessa indiscretamente pela cortina e invade minha privacidade. Ignoro os apelos do sol, me aconchego ao conforto dos lencoes macios cheirando a jasmim. O mundo la fora grita meu nome, me sacode.
Ouco vozes misturadas ao ruido estridente dos motores dos carros. Uma parede fina de drywall (papel e madeira) separa o quarto da lavenderia coletiva do edificio e nao consegue abafar o turbilhao e o trepidar frenetico das maquinas de lavar e secar roupas.
OK! Falo em voz alta. Voces venceram! Prometo que muito em breve terei minha casinha com arvore e rede no quintal, bouganvillia, margaridas, girassois, passarinhos, borboletas e vizinhos o mais distante possivel.
Resignadamente me levanto e preguicosamente me arrasto ate a cozinha. Enquanto preparo o café instantaneo, organizo mentalmente a agenda do dia: As 11:00 encontro com uma amiga, super-mercado, lavar roupa, acertar detalhes que faltam para o casamento. Casamento! Meu pensamento se detem neste topico.
Café esta pronto. Sento-me a mesa e saboreio o cafe preto, quente e amargo. Tom e eu vamos nos casar em menos de dois meses e ainda faltam acertar milhoes de detalhes.
O sentido de urgencia misturado a cafeina acelera meus movimentos. Rapidamente me levanto, tomo uma ducha quente como sempre e pe na areia.
Droga! Uma mistura de raiva e frustracao enche meu peito e dilatam minhas veias.
Tom foi trabalhar de carona com o socio, deixou seu carro estacionado atras do meu e carregou a chave. Ou seja: Estou presa, imobilizada dentro deste apartamento. Praticamente, dentro de quatro paredes. Sem carro nada feito. Nao vou a lugar algum.
Tentando recuperar a calma, respiro fundo, me atiro descuidadamente na poltrona da sala enfrente a janela.
Distraio meus pensamentos e ate me divirto olhando o jardim do lado de fora. Os gatinhos passeam e espreguicam-se ao sol. As flores estao lindas e a grama verde como nunca.
O telephone toca. Minha mae do outro lado. Coincidencia. Estava mesmo pensando em telefonar para ela.
A voz da minha mae esta calma e serena:
- Filha, o papai..
Estas tres palavras ditas do outro lado da linha, a sete mil e tantos kilometros de distancia, foram o suficiente para eu entender que a voz do meu coracao ou da minha intuicao dizia que algo muito pesado estaria para cair sobre mim.
Minha mae continua: - O papai faleceu, ele se foi.
19 de agosto de 1999 meu pai faleceu aos 75 anos, 15 dias depois de seu aniversario.
O sol brilhava la fora mas fazia tanto frio naquele momento, meu mundo desabou, o universo todo caiu com toda a forca sobre mim, a terra se abriu.
Chorando desconsoladamente, como munca havia chorado antes, solucando e tentando falar ao mesmo tempo, procurava em vao entender a dura e cruel realidade da vida.
Enquanto tentava digerir o gosto amargo da sua partida brusca e sem direito a um adeus, recapitulava fracoes da sua existencia ligadas a minha historia.
A primeira e nitida lembranca da minha infancia junto ao papai e da epoca em que eu tinha talvez tres anos de idade.
Papai era amante da musica. Ele me introduziu aos grandes e imortais compositores e a boa musica.   Lembro do meu pai sentado no chao, com os ouvidos grudados ao alto-falante da antiga“vitrola”. Movel grande de madeira lustrosa e clara. O som vibrava estridentemente e enchia cada canto daquela sala espacosa e vazia. Todos em casa ouviamos o som dos Demonios da Garoa, Charles Aznavour, musicas sacras corais, musicas classicas e instrumentais, Edit Piaf, Willie Nelson, Frank Sinatra, Rita Pavone, Domenico Modugno, Ray Charles, Ray Connif, Mirrele Matieu, Louis Amstrong e muitos outros.
Eu ficava sempre atenta esperando a hora que o papai abrisse “a vitrola” e colocasse o LP para girar. Nao tinha preferencia quanto a musica que faria vibrar os alto-falantes. Qualquer que fosse a escolha do dia, ou do momento me fazia feliz. Lembro nitidamente que a melodia, ritmo e poesia das musicas que papai ouvia me traziam conforto e alegria. Ate hoje a musica me absorve, fala no mais intimo do meu ser, envolve meu corpo e alma como um cobertor aveludado e macio.
Assim como aprendi a gostar e apreciar musica, tambem desenvolvi um gosto muito agucado pelo sorvete e sobremesas em geral. Todos os dias tinhamos que ter um docinho depois das refeicoes. Papai se sentava a mesa e antes da a primeira garfada, perguntava a minha mae: Qual sera a sobremesa? - A pergunta acompanhava o mesmo sorriso de uma crianca marota.
A sobremesa era um evento especial e festivo. Quando o prato era posto no centro da mesa, aplaudiamos com entusiasmo, seguindo a liderenca e o exemplo do papai: - Oba!!! Hummmmmmm e vagarosamente deliciavamos ate a ultima migalha do manjar.
Uma das muitas pequenas coisas que trazem a memoria do meu pai e sorvete. Especialmente o de milho verde e o de abacate. Papai conhecia todas as melhores sorveterias das cidades onde morava ou visitava. Era muito comum que ele indicara a soveteria “tal” como o ponto principal ou turistico da cidade: -”O melhor sorvete do mundo”! Frase favorita que ficou na historia da nossa familia.
Papai era um observador intuitivo das pessoas e lugares, alem de ser um otimo ouvinte. Ele sempre dizia que sao poucas as pessoas que sabem ouvir. Com todas essas abilidades, ele era um otimo escritor e contador de historias. Gostava de narrar anedotas veridicas de fatos que envolviam geralmente colegas pastores ou membros das igrejas. Papai ria tanto das suas proprias piadas que mal conseguia chegar ao final da historia. Por mais que o conto nao tivesse graca alguma, ninguem consegui ficar serio. O riso do papai era epidemicamente contagiante.
Desde muito pequena, domingo apos domingo, religiosamente ia a igreja. Filha de pastor tinha que dar o exemplo. Nao era uma opcao, era obrigacao. Sentada nos bancos duros de madeira, ao lado de minha mae, ouvia os sermoes do meu pai. Recostava a cabeca no colo de mamae e adormecia serenamente enquanto papai ministrava o sermao. De tanto em tanto, me despertava com o som das musicas de louvor cantadas pela congressao ou o coral.
Com o passar do tempo, comecei a entender e a apreciar as mensagens e ja nao dormia durante os cultos. Sentia orgulho de ver meu pai no pulpito, ministrando e sendo ouvido atentamente por tantas pessoas. Ele era um grande orador, era sabio, extremamente carismatico e culto. Tinha seu proprio estilo. Voz suave, vocabulario simples e didatico, arrancava risos e lagrimas dos ouvintes.
Lembro muito de um dos seus sermoes entitulado:” …Foi-se sem deixar de si saudades”….
Baseado no livro da Biblia - II Corinthias 21:20. Refere-se a vida do rei Jeorao, que reinou 8 anos em Jerusalem. Esse rei foi tao ruim, tao mal que morreu sem deixar saudades.
O desafio da mensagem e que precisamos usar as oportunidades, habilidades, motivacao, virtudes e potencial que Deus nos da para criar e fazer o bem porque assim quando chegar nosso final iremos deixar saudades nos coracoes dos que ficam.
Papai deixou muita saudade. Ele viveu plenamente aquilo que pregava e ensinava.
Quando ele se foi, comecei a mentalizar, a pensar mais nao so na vida dele, na sua historia e nos seus ensinamentos que foram tantos. Me tornei mais consciente e vigilante da minha propria existencia.
Nao foi possivel ir ao seu funeral e enterro. Nao tive a oportunidade de dar-lhe um abraco um beijo, um adeus. Ficou faltando este capitulo para finalizar na minha mente o final da vida preciosa do meu pai. Por este motivo, me recusei a visitar seu tumulo quando voltei ao Brasil depois da sua morte.
Na minha lembranca, permanece vivo o quadro alegre do nosso ultimo Natal ano de 1999 na cidade de Sao Pedro, onde ele e minha mae moravam. Recordo seu sorriso alegre, as piadas e a felicidade que nao conseguia dissimular por ter todos os filhos, genros e netos juntos a mesa trocando presentes de amigo secreto, comendo a ceia de Natal, peru com pessego em calda e o delicioso e esperado PAVE DE DOCE DE LEITE.

Papai viveu e deixou de si muita saudade.

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